terça-feira, 23 de setembro de 2008

ENTRELAÇADOS E PONTOS: BORDANDO TEIAS DE CULTURA NO BRASIL


Há uma verdadeira ofensiva cultural da burguesia, que se apropria em grande parte do saber(...) de artesãos e camponeses, codificando e simultaneamente intensificando um gigantesco processo de aculturação, já iniciado (obviamente com formas e conteúdos diversos) pela Contra-Reforma. O símbolo e o instrumento central dessa ofensiva é, naturalmente, a Encyclopédie.
(Carlo Ginzburg, Mitos Emblemas e Sinais)


Ginzburg fala sobre o século XVIII. Sobre um processo que, ao longo daquele século, foi criando as academias, estabelecendo os espaços do saber, inventando, por assim dizer, a erudição. Formas de conhecer o mundo sempre existiram. Sempre aqui como uma categoria bem definida: desde o surgimento de um homem-linguagem, o humano criador dos códigos e dos meios de decifrá-los. Mais do que estabelecer que saber veio primeiro ou qual o mais legítimo baseado na sua origem é preciso desmistificar a separação entre eles e suas formas de experimentar o mundo.

Formas de experimentar o mundo. Talvez se trate exatamente isso, ou até somente disso. Quando o doutor diz o que é certo, o que é bom e o que é belo nada mais está fazendo senão tentar estabelecer como as pessoas devem experimentar o mundo. Acima de tudo, tentando proclamar quais são os limites para essa experimentação.

Em vez de rechaçar a ciência como um lugar de saber, é preciso retirá-la do lugar de único meio de conhecer. Ela é um, não é o e antes deste houve outros. Vale a pena pensar, mesmo que en passant no surgimento da vacina e na variolização. Assim ficou conhecida uma forma bastante peculiar das classes populares de prevenir a varíola. Consistia em inserir um punhadinho de pus recolhido do doente em cortes produzidos em pessoas sãs. A experiência mostrou o que era eficaz – curar a partir do próprio veneno – e o método possibilitou que os cientistas pensassem em vacina. Será que os meios racionais levariam um cientista a pensar que para curar uma doença era justamente necessário inserir no organismo são umas provinhas da doença, pra que ele se mobilizasse na produção de anticorpos contra a tal?

23 de setembro de 2008. Será lançado o Pontão de Cultura Instituto CUCA da UNE, temos muito que aprender. Entre Aristóteles e Mestre Vitalino, bordar teias de cultura que nos levem a outras formas de ver o mundo. Se este estado de coisas só muda com a ação dos indivíduos que constroem a história no interior de suas coletividades, antes de tudo é preciso mudar o olhar e as maneiras de experimentar esse mesmo mundo.

Estamos num momento único, onde uma política pública age exatamente nesse eixo: potencializando formas diversificadas de experimentar o mundo. Cabe a nós não perder a chance de escrever e cantar uma linda página da história, onde o doutor e mestre deram as mãos e juntos criaram novos mundos, novas experiências e novas memórias de um Estado chamado Brasil.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

A 6ª Bienal de Arte, Ciência e Cultura da UNE dá início à sua fascinante viagem pelos meandros da formação do povo brasileiro. Vai descobrir o Brasil, desvendar sua formação, desesconder de suas profundezas toda a sua caboclice, sua mameluquice, sua mulatice... Hélio Oiticica descobriu o Brasil. Sacou, depois de se extasiar com a marginália, que a riqueza da cultura do país não estava à margem, estava subterrânea! Era preciso desenterrar o Brasil e não descobrir.
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Misturas de formas e cores, de sons, de jeitos, de expressões... Encontramos no Barroco sua primeira audácia: a pérola torta e pitoresca que, aos olhos do belo clássico, não passa de puro mau gosto. Mas a brasileirice, surgindo ali debochada e exagerada, zomba do clássico ao mesmo tempo em que o cultiva, blasfema heresias e pede perdão aos céus. As bocas do inferno lado a lado das portas dos céus inventam um jeito de ser, mistura as dualidades, ridiculariza o racionalismo que compartimenta o mundo.
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Os ibéricos, europeus tortos, argonautas do Atlântico que chegaram ao sul do mundo em suas jangadas de pedra. A mãe amorosa que Saramago disse ver atordoada com a sorte de seu filho do além-Pireneus jogado no mar, Europa soberba que, na verdade, olhava o filho ibérico como quem espera o filho pródigo. Mas, tão malandro, esse nunca mais voltou. Não o mesmo. Foi gerar em terras subtropicais algo fora da imaginação da mãe amorosa. Algo mais volúvel e desregrado e suas frouxas instituições. Suas sinhás fogosas transitando pelos bugres, seus senhores desejando as negras, o batuque louvando os santos católicos. Caleidoscópio é metáfora pequena.
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Neste turbilhão, as três matrizes originais – a negra, a indígena e a ibérica – vão gerando outras submatrizes, misturas onde não se sabe mais onde começa uma e termina a outra. Mas, longe da homogeneidade almejada pelo projeto totalizante, o que se vê é a interação em disputa como qualquer outra interação. Estabelecida em uma relação entre dominadores e dominados, ainda que não seja uma relação engessada, já que há subversões e em determinados momentos os papéis se invertem, a democracia harmônica é uma ilusão perpetuada por quem deseja esconder a importância dos de baixo.
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Nos dias de hoje, desejamos a diversidade. Consideramos-nos iguais porque somos diferentes. A harmonia não é mais sinônimo de pasteurização. Tal qual na harmonia musical, buscamos juntar coisas diferentes e delas extrair um equilíbrio e não uma uniformidade. Como nos vitrais, a cultura brasileira é formada por diversas formas, cores e texturas que, somente em conjunto, fazem sentido.
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Aprovado na segunda reunião de diretoria da UNE desta gestão, a primeira do ano, realizada nos dias 24 e 25 de janeiro na cidade de São Paulo, o tema da sexta edição do evento está lançado: A formação do povo brasileiro. E estão todos convidados a, com este espírito, embarcar nesta e viagem dez anos após a primeira edição do evento.

Imagens : (1) Luis Fernando Guimarães dança com o Parangolé de Hélio Oiticica (2) Operários, Tarsila do Amaral, 1933 (capa) Rafael Gomes da reunião da diretoria plena da UNE com cuqueiros.
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Texto : -Aline Portilho, CUCA –RJ, produtora cultural, e colunista do blog.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A Grandeza do Fugaz

O clique da máquina fotográfica revela para o mundo a captura do instante. É o ato mágico de prender no papel o fragmento exato que está entre o que é agora e deixará de ser no próximo segundo, o instante seguinte.

Os amigos param o mundo, ou o fragmento de tempo que lhes é permitido, na obra de Vitor Vogel, exposta num sobrado quase centenário da Lapa - RJ.

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Na exposição Um ano de vida bem vivida, de Vitor Vogel, salta aos olhos a sensibilidade de apreender este instante único, diverso de todos os outros. Singular na grandeza fugaz de um filamento de lâmpada ou de um olhar camarada.

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O caminho que percorre, da identidade militante aos contrastes do cotidiano, desvenda os passos do andarilho perspicaz. Vai descortinando a cidade em seus paradoxos e utopias, revelando olhares poéticos sobre ela onde antes só se via a mecânica rotina da vida metropolitana.

Utopias e esperanças captadas em um olhar.

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A exposição é permanente e está aberta para visitação no sobrado de número 651 da Rua Gomes Freire, na Lapa – Rio de Janeiro. Também pode ser acessada no blog http://www.sabiosabia.blogspot.com/.