quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Célio Turino | PARTE 2


A gente enxerga o Programa Cultura Viva como o catalisador de um processo político que tem referência o Fórum dos Pontos de Cultura já realizou dois encontros, vem se consolidando. Como você percebe essa relação de uma política pública impulsionando uma organização da sociedade civil. Isso altera antigas relações entre Estado e sociedade civil?

É algo assim que eu tenho me debruçado, sabe? Eu mesmo às vezes eu me delicio em tentar entender o que aconteceu. Olha só que interessante: o programa começou a partir de um reconhecimento e de uma reverência à iniciativa da sociedade. Então, eu acredito que esse foi o primeiro ponto positivo do programa. Como resultado disso; uma vez que ele potencializa essas iniciativas, busca o empoderamento das pessoas e dos grupos sociais; houve também um empoderamento da rede, até porque o Cultura Viva e o Ponto de Cultura ele só se realiza quando ele se articula em rede, do contrário fica só um simples processo de transferência de verbas, que é importante, mas que é limitado. O que a gente potencializa na articulação em rede e que é visível para quem participa de encontros como a Teia, que a gente já fez três, é muito significativo. E aí, o que eu percebo é que está se gestando um movimento cultural enquanto movimento social e é uma forma nova de expressão da sociedade. Que junta a ética com a estética. Ele junta o entendimento de Brasil, uma idéia mais difusa de planos, de ideário para o país com a expressão artística, com o sentimento, um pouco razão e sentimento. A gente trabalha numa linha também entre essa sensibilidade, o sensível e outras formas de inteligência e percepção da vida que não só a racional, cartesiana. E isso está se expressando em um movimento social. No que pode dar? Eu não sei... Eu gostaria que desse em muita coisa, mas isso ainda exige um tempo. Mas eu diria que, talvez, esse novo movimento cultural que vai se gestando, polifônico, diversificado, mas muito fincado na realidade social.

A gente trabalha muito com cultura popular e ao mesmo tempo trabalha com uma cultura de vanguarda estética tecnológica, cultura digital. Tem vários Pontos de Cultura, ali o Ponto de Cultura de Folia de Reis e, do lado da Folia de Reis, com aquele velhinho desenvolvendo todo um trabalho de cultura tradicional, tem um menino com dread, cheio de tatuagem trabalhando ali no estúdio multimídia que grava as músicas daqueles senhores... então, são outros processos de integração política e social que vão se gestando.

Eu acho que, talvez – e aí a gente precisa de mais alguns anos – a gente esteja vendo a ebulição de um novo movimento social que pode estar para o processo de transformação do Brasil agora no começo do século XXI, da mesma forma que o movimento popular, mais no sentido stricto, daquelas lutas de moradia, de saúde, do movimento sindical estiveram na construção do Brasil do final do século XX. Então toda aquele movimento sindical dos anos 70 e 80 resultou também em um desenho que é o que a gente vivencia hoje. Talvez por esse movimento mais diverso da cultura a gente esteja vendo o nascimento de um outro processo de mudança. E o que vai dar? Aí eu não sei... Espero que dê em algo bom porque são as pessoas fazendo para as pessoas, que pessoas consigam cuidar bem. A gente só consegue mudar as coisas se a gente cuida bem de nós mesmos e dos outros.

Há um texto seu de 2006 sobre narrativa histórica e museus. E ali você problematiza a seleção do passado e há uns elementos ali bastante interessantes para pensar o Cultura Viva como ele contribui – ou se ele pode contribuir, se você acha que contribui – para essa narrativa histórica. Como esses agentes que fazem parte do Programa Cultura Viva lidam com essa idéia de estarem se inserindo em uma nova narrativa da nação?

Eu fiquei bem feliz por vocês terem tido essa percepção. É algo que até eu coloco pouco às vezes nas minhas falas sobre o Programa. Eu diria o seguinte: a grande fronteira da luta de classes, e aí dessa disputa de poder, está na conquista do direito à narrativa. Quem consegue apresentar sua versão tem condições de se legitimar enquanto poder. Isso eu percebi no meu trabalho como historiador, em museus. Sempre há uma disputa pelo direito a fala, e pelo não direito a fala. E isso não no Brasil só, no mundo todo. Eu diria que o que a gente fez com o Ponto de Cultura tem muito por base essa percepção. O estúdio multimídia tem um papel essencial, é o único elemento comum a todos os Pontos. Para que? Para que as pessoas tenham condição de conseguir apresentar a sua versão e pela sua própria voz. Muitas vezes a gente tem acesso à situação de vários povos, e até a partir de narrativas muito comprometidas como os povos indígenas, pessoas mais exploradas, quilombolas, trabalhadores e tudo mais... Mas, ainda assim, é um olhar externo, um olhar que vem de fora. O que a gente tenta praticar com o Ponto de Cultura é o exercício do olhar interno. O Machado de Assis tem um conto que eu gosto muito que é O Espelho. Ele fala de um alferes. O conto é assim: Um novo tratado sobre a alma humana. Ele fala que as pessoas têm na verdade duas almas, a alma de dentro e a alma de fora. A de dentro que é aquela que faz e a de fora que diz quem nós somos, que determina nossa personalidade. Esse alferes, de repente, os escravos fugiram e não tinha ninguém e também não tinha mais a família... Não tinha mais ninguém pra dizer: “olha só como você é bonito, olha como você é nobre”. Aí, ele foi descobrindo que a personalidade dele foi definhando e que ela dependia do que falavam dele. Mas também dependia do que saia de dentro dele. Então, na nossa sociedade essa impossibilidade de uma narrativa polifônica ela é estratégica para manter um sistema de dominação. Então, o que a gente faz é trabalhar numa contracorrente. Esse ano, nós vamos lançar provavelmente no Fórum Social Mundial, um novo edital que é uma premiação para Pontos de Mídia Livre. Todo esse movimento que vai se constituindo de midialivrismo, de sites de articulação de redes, a gente acredita que seja muito próximo do que a gente vem fazendo com os Pontos de Cultura. E eu acho que esse vai ser o ano em que a gente vai colocar em prática essa questão da narrativa mais em pauta.

Nas políticas públicas para cultura a gente percebe que tem uma idéia elementar de construção e fortalecimento da nação. Isso pegando desde 37 ali com a fundação do SPHAN, com o Rodrigo Melo Franco e como essa política veio se desenvolvendo e até os reveses que essa política mesma do patrimônio ela teve. E o que parece é que, hoje, a gente lida com uma outra idéia de nação, com uma outra idéia de cultura... Você concorda? O que você pensa sobre esse processo, você concorda que tem uma transformação, como você entende as formas de lidar hoje com essa idéia de nação e de cultura?

Eu concordo em parte. A idéia de nação, da fundação de nação, que coincidiu com o governo do Getúlio Vargas, que reconheceu a capoeira, aí vem toda a discussão sobre o barroco e tudo mais ela foi essencial para criar essa imagem do que nós somos, mas o que nós somos é um processo de transformação constante. Essa busca veio de antes. Os modernistas colocaram essa questão de uma forma muito original, de certa maneira até hoje sobrevive esse pensamento dos modernistas, da antropofagia. Eu acredito que foi uma contribuição muito essencial assim como, se você joga para antes, o romantismo foi sempre esse esforço de um Brasil, de a nação se entender como nação. Nação também é uma abstração, mas ela é uma abstração a partir de elementos muito efetivos. O Brasil tem um idioma e, ao usar esse idioma, e o Brasil é o maior país do mundo que tem um idioma só que é o português, que é entendido de Norte a Sul do país - se bem que nós temos muitas outras línguas faladas aqui, ao mesmo tempo em que é uma grande nação com um único idioma, nós também somos uma nação em que sobrevivem vários outros idiomas. O idioma que eu digo tem extrema importância porque não é só o jeito de falar. É o jeito de pensar. Ou melhor: o jeito de falar reflete o jeito de pensar. Esse jeito mais suavizado de falar brasileiro, meio como onda. Quem viaja para o exterior percebe isso, o pessoal até pede para que a gente fale só para ouvir a musicalidade do português do Brasil, que é diferente do português de Portugal. Então há uma necessidade enquanto expressão dessa identidade. Quem somos nós? A gente busca isso também com os Pontos de Cultura. Agora estamos chegando a algumas idéias. Primeiro: construção de identidade por si não resolve. É preciso que haja uma convivência dialética. A identidade ao lado da alteridade. Alteridade é a capacidade de você se ver no outro. Eu até estou trabalhando um texto que é um pouco sobre isso: identidade mais alteridade é que resulta a solidariedade. Inclusive resgatar o sentido da compaixão. A política ela é uma disputa de interesses e ela foi se desvinculando de valores, muito ligada só a ideologia. A ideologia é a construção de idéias a partir de grupos, de relações sociais e é fundamental, ideologia é essencial. Mas eu queria me preocupar com a construção de valores. E alguns valores são esses. Não há ideologia de transformação social que resista com a falta de solidariedade, com a falta de sentimento de compaixão, de se compadecer pelo outro. Um pouco o que a gente vai fazendo com o Ponto de Cultura. Por exemplo, agora, com aquela situação lá de Santa Catarina, um grupo de Pontos de Cultura foi lá passar o Natal em abrigos. São pequenos exercícios, mas a idéia do Ponto de Cultura sempre é essa, de pequenas ações que vão acontecendo e vão criando sentido.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

CÉLIO TURINO | parte 1

Célio, conta pra a gente um pouquinho quais foram os caminhos – intelectuais e políticos – que levaram você até a SPPC...

Comecei minha militância social e política em 1977 no movimento estudantil secundarista. Na sequência entrei no PCdoB e participei de toda a luta pela redemocratização do país. Das lutas sindicais, Movimento Contra a Carestia, Comitê Brasileiro pela Anistia, Movimento de Defesa da Amazônia até a Campanha das Diretas Já. Sempre tive uma ligação mais direta com a organização da cultura. Mesmo quando estava na universidade, fazendo História na Unicamp, eu me dedicava muito a atividades culturais em bairros, em periferias e favelas na região de campinas, com cineclubes, feiras de artes em bairros distantes e atividades culturais nessas regiões. Isso fez com que desde o início eu desenvolvesse meu trabalho profissional. Dirigi vários museus de história e antropologia até que fui chamado pra trabalhar como secretário de cultura em Campinas, isso em 1990. Fui secretário de cultura até 1992 – foi lá que eu desenvolvi o conceito do que hoje são os Pontos de Cultura. É claro que era algo um pouco menos elaborado do que a gente aplica hoje, mas envolvia as casas de cultura, com gestão comunitária e uma série de ações mais autônomas e próprias da comunidade sendo desenvolvidas nesses locais. Depois fiz mestrado em História e Cidades, escrevi vários ensaios entre eles Na trilha de Macunaíma [Editora SENAC, 2004], que é um livro que trata da relação ócio e trabalho na cidade e da própria constituição do sentido de identidade a partir de um estudo dos modernistas, da relação da cidade com seus espaços de lazer, que são sobretudo áreas culturais.

Em 2004 o Ministro Gil [Gilberto Gil, Ministro da Cultura entre 2003 e 2008] me convidou para trabalhar no Ministério da Cultura e formular um programa que gestava-se com uma série de problemas. Era um programa de acesso a cultura e que não tinha dado muito certo. Isso porque ele tinha o foco muito voltado pra estrutura, pra construção de centros culturais em periferias e favelas no Brasil e não tinha muito substrato em termos de conteúdo, do uso e da ação permanente. E cultura é, sobretudo, isso. Muito mais que prédio, cultura são pessoas. Cultura é um processo contínuo. O próprio nome, a própria etimologia da palavra cultura vem daí. Cultura vem de colere, do latim colere que é cultivo. E a mudança que eu propus foi simples: nós deixamos de colocar o foco na estrutura pra jogar o foco naquilo que é o próprio fazer cultural.

Então a gente pode dizer que seus caminhos individuais, intelectuais confluíram com uma idéia do Ministro Gil e daí surgiu o Cultura Viva?

É. Você veja bem, joguei aqui pra você trinta anos! Sobretudo no início da nossa vida, nossa militância social e política ela determina muito do que nós seremos. Tem gente que diz que, quando a pessoa envelhece, ela tem que mudar de opinião. Dizem que quem não foi comunista na juventude está errado, mas quem continua depois dos quarenta é burro. Eu te digo o contrário. Inclusive as minhas convicções ideológicas em defesa do comunismo enquanto uma filosofia, enquanto entendimento de construção de uma sociedade ela só se reforçou, sobretudo nesses últimos anos, nessas minhas andanças aí pelo Brasil a fora. Com o trabalho dos Pontos de Cultura eu percorro muitos cantos do Brasil: aldeias indígenas, cidades muito pequenas do interior do Nordeste e desse Brasil todo, assentamentos rurais, favelas e ao fazer esse percurso eu diria inclusive que a minha convicção de comunista se consolidou muito mais. Isso depois dos quarenta, quase que cinqüenta.

Quem lida com cultura sabe que entre o planejado e o feito tem um desnível. Como não parece o seu caso, em que se reforçaram suas convicções, muitas vezes entre o planejado e o feito tem uma decepção. A próxima pergunta é exatamente sobre isso. Esse processo que você vem pensando e planejando ao longo do tempo e o que é realizado no Cultura Viva. Como você enxerga essa transição entre o planejado e o feito?

Então, é muito doloroso. Porque a sociedade ela não se coloca aberta a esse protagonismo da própria sociedade. O sistema econômico e político, a mídia, todos eles trabalham num sentido unidirecional. O que nós fazemos com o Ponto de Cultura é o oposto disso. É incentivar uma polifonia, como falava o Milton Santos – aliás eu uso o Milton Santos na construção teórica do Programa Cultura Viva – e, ao estabelecer essa polifonia, esse protagonismo efetivo dos agentes sociais, das pessoas, nós quebramos uma lógica que é uma lógica de dominação, que é uma lógica concentradora. Que vai desde todo mundo se vestir igual até outras formas de concentração de poder, de imposição de formas de trabalho e tudo mais. E o que a gente faz não. É o contrário. O que o Cultura Viva tem de original? Ele segue o fluxo. E ao seguir o fluxo ele segue a vida. E a vida é inacabada, é contínua. Tem até uma frase do Paulo Freire que é assim “Onde há vida há inacabamento”. Então o próprio planejamento, que às vezes a gente imagina que tem que ser um planejamento estático, todo completinho, onde todas as etapas são previstas, conosco a gente faz de uma outra forma. É um planejamento no processo. Caótico, mas nesse sentido da física quântica, que acaba encontrando a ordem nesse caos.

Então, de fato é um caminho difícil, é tortuoso, porque a gente trabalha com outros paradigmas. Quais são esses: em vez de um Estado que impõe um Estado que dispõe. Isso parece que é uma pequena diferença semântica, mas ela é muito significativa. Porque a natureza do Estado desde que ele se constituiu há cinco mil anos atrás é impositiva e concentradora. O que a gente faz é oposto disso. Como que eu exemplifico: nós lançamos um edital em que se abre pra receber propostas da sociedade. E nós dizemos quanto podemos dispor, qual é o recurso, mas não como aquele grupo social deve agir. Cada um dá uma solução diferente para o recurso que o Estado dispõe. E assim a gente faz um programa bastante diverso e que encontra complementaridade exatamente na diversidade. Isso que é a lógica da vida. Se você for olhar uma floresta, ela é extremamente diversificada e complementar. Tem árvores que nascem mais rápido pra dar sombra pra outras árvores que precisam de mais tempo pra crescer. Por exemplo, o mogno, se você plantar o mogno a céu aberto, a pleno sol, ele não cresce. Precisa ter uma árvore mais frágil sobre ele e ele vai crescendo àquela sombra e fica aquela árvore esplendorosa e secular. Então, um pouco é esse processo da complementaridade que a gente vai percebendo com os Pontos de Cultura. De certa forma eu diria que o programa, ele tem alcançado seus objetivos. Mas, falta muito ainda pra se fazer. Sobretudo porque eles caminham nessa idéia da liberdade, da capacidade da iniciativa, da capacidade criadora das pessoas. Acho que isso acaba superando as dificuldades de estrutura, de concentração. Enquanto paradigma, a maioria das políticas públicas atua a partir da carência, da falta. Então, as pessoas não leem, é preciso oferecer livro para elas. As pessoas não tem acesso ao serviço de saúde, é preciso oferecer um serviço de saúde a elas e assim por diante. O Cultura Viva trabalha no oposto disso, ele desenvolve uma política a partir da potência das próprias pessoas. É uma lógica invertida. Que resultado isso pode dar? Não sei... E ainda há muito a ser cultivado. Mas nós acreditamos e é isso que nos faz ficar aqui. É muito difícil a estrutura burocrática,a dificuldade de recursos humanos e tudo mais. Mas é acreditar que é possível transformar a realidade e que essa realidade só pode ser transformada através das pessoas. Somente a partir das pessoas, das pessoas organizadas em grupos, em conjunto, da forma que elas acharem melhor, que dá muita força pra continuar enfrentando as dificuldades.

Sem dúvida essa inversão é uma das coisas mais interessantes do Programa Cultura Viva. De ser um Estado menos impositivo, isso é bastante inovador. Mas isso dentro de uma burocracia estatal que enrijecesse, deve ser bastante complicado. Tem inclusive uma idéia de transformar o Cultura Viva em lei pra que não se perca no processo... Como é que você enxerga essa relação dentro da burocracia e essa necessidade de transformar em lei?

Houve uma etapa: era necessário iniciar o programa e o aparato legal e jurídico para amparar isso estava muito limitado, além das dificuldades materiais de governo. Pouca gente, pouca estrutura de funcionamento, de trabalho. Mas, se o programa não fosse pra rua ele também não se efetivaria. Pra você ter uma idéia, eu tomei posse aqui no dia 31 de maio de 2004. No dia 14 de julho nós já estávamos com o edital na rua. Em novembro a gente já havia feito o primeiro convênio com um Ponto de Cultura. Foi um Ponto de Cultura de Arcoverde, no agreste pernambucano. Então o elemento surpresa, o elemento do movimento ele é importante porque as instituições são muito pesadas e aí não só o Estado até a UNE ou um sindicato, ela tem o peso de uma cultura institucional muito carregado, o que acaba engessando muitas vezes uma série de idéias que a gente por ventura tenha. Então, foi a partir um pouco dessa convicção também que a gente deu uma driblada nesse processo com esse movimento de agir rápido. Ocorre, porém, que depois do processo de implantação do programa nós enfrentamos problemas muito duros. Prestação de contas, normas bastante rígidas, não adequadas ao processo da vida. Isso trouxe dificuldades sobretudo para os primeiros Pontos de Cultura. Agora, nós estamos com dois movimentos: o primeiro é da descentralização do Programa. Nós já chegamos a 850 Pontos de Cultura, não há condições de fazer a administração disso diretamente de Brasília. Ao longo desse ano que passou, nós fechamos uma série de acordos com governos estaduais e algumas prefeituras para que eles lancem seus próprios editais. Mas enormes problemas vão surgir. A tentativa, às vezes a tentação, de aparelhar o programa, de instrumentalizar. Então, há uma outra supervisão, um outro acompanhamento que nós vamos fazer. Mas inevitável porque é necessário que a gestão das redes dos Pontos de Cultura fique mais próxima de onde acontece a ação. E aí o Ministério da Cultura fica na supervisão. Esse é o caminho que a gente está fazendo dentro do marco legal atual.

Agora, a solução mais efetiva envolve a criação de uma lei que a gente está chamando Lei da Autonomia e do Protagonismo Cultural, uma lei que fosse muito simples mas, que reconhecesse alguns pontos que estão sendo um grande acúmulo na definição da política cultural. Alguns gestores de política de cultura confundem cultura com evento ou com atividades pontuais, quando você faz um acordo com um grupo cultural a preocupação é excessivamente voltada para o resultado, quando cultura não é produto. Cultura, como disse no começo, cultura é processo. Então, o primeiro ponto a ser apresentado nessa lei é o entendimento de cultura enquanto processo. O segundo de que ela é produzida pelas pessoas, pela sociedade. Então, a autonomia no fazer cultural é essencial. Sempre quando houve tentativa de ingerência profunda, seja ela de ordem econômica, que aí joga cultura para o mercado e fica uma cultura pasteurizada; ou política-ideologica, como houve inclusive no período do realismo socialista na União Soviética, os resultados são bastante ruins e empobrecedores da cultura. Ou seja: a cultura precisa da autonomia, precisa da liberdade, porque ela só se desenvolve com força a partir de um protagonismo das pessoas. Então essa seria a essência filosófica dessa leia que a gente está formatando. E nós acreditamos também que o processo de aprovação dessa lei não deve ser iniciativa do governo e muito menos de uma emenda parlamentar, de uma proposta de um parlamentar. Porque o que a gente está tratando é do próprio processo civilizador brasileiro, é da cultura, da alma das pessoas, da sociedade, do país e da nação. Ou seja, acho que seria incoerente que nós fizéssemos uma lei que não fosse também dentro desse processo de baixo pra cima. Então, agora a gente vai trabalhar na elaboração de uma minuta, na consolidação conceitual dela para em seguida caminhar para uma lei de iniciativa popular. Imagino que com milhares, ou, quem sabe, pra lá de milhão de assinaturas, a gente estaria sendo mais coerente e daria mais consistência a essa lei.

... Com certeza! E como o apoio do CUCA, com toda a certeza!

Oh, que ótimo!



sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Aline Entrevista | 10 anos de Retomada . parte 1

- Tiago, você participou de um bom período da chamada “retomada cultural” da UNE, primeiro como diretor de cultura da instituição, depois como coordenador geral do CUCA. O que o motivou a dedicar tanto tempo de vida para a construção desse projeto cultural da UNE? 

Na verdade, a história começa antes, em 21 de novembro de 1999 no Congresso de reconstrução da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais em Diamantina, na ocasião fui eleito diretor de comunicação e cultura da entidade, a partir de então comecei a atuar na área. Fui coordenador geral do 1 e 2 Circuito Universitário de Cultura e Arte em Ouro Preto em 2001 e 2002 e coordenei o Festival Coração de Estudante, uma parceria da UNE com a Rede Globo de televisão também em Ouro Preto em 2002. A relação com a UNE aumenta ainda mais quando vou a Recife e coordeno a programação da 3 Bienal, depois duas gestões na diretoria de cultura, coordenador geral da 4 e 5 Bienal e uma na coordenação do CUCA.

Confesso que minha entrada na área da cultura foi fruto de uma orientação política, sempre fui um cara antenado, leio, escuto muito rádio, sou ligado em tecnologia, tendências, mas isso por si só não me colocava na área, foi necessário uma decisão política da força da qual participava para que eu, com determinado perfil, ocupasse e desenvolvesse essa tarefa, primeiro na UEE depois com maior ênfase na UNE e no CUCA.

Antes de tudo o que motiva minha vida é uma necessidade incontrolável de alterar o estado das pessoas e do mundo, com o tempo fui aumentando meu grau de consciência e entendendo que era necessário fazer isso de maneira organizada, com objetivos claros e convencendo politicamente pessoas, isso ainda me motiva. Outro fator importante foi que me apaixonei pelo movimento estudantil.


- Qual a importância você vê em a UNE manter um projeto cultural?

Muitas pessoas só conseguem enxergar o projeto de cultura da UNE de maneira isolada, isso por si só já é importante, historicamente a UNE desenvolveu um projeto de cultura e foi importante, penso que devemos aprender com as experiências e desenvolver o trabalho do CUCA, hoje muito mais aberto a experiências de fora da universidade através dos Pontos de Cultura.

Entretanto é preciso ampliar o olhar e visitar a história dessa última “retomada” para entender que a importância está para além do trabalho cultural, no meu entender foi esse movimento cultural que iniciou e pode continuar alimentando uma nova cultura política no movimento estudantil brasileiro e isso é fundamental. A dita retomada acontece em um momento de extrema crise do movimento estudantil brasileiro e foi através da cultura que encontrou-se um caminho e se deu uma forma e conteúdo mais contemporâneo ao movimento.

Esses dois motivos demonstram a necessidade de a cada dia desenvolver mais o trabalho.


- As Bienais da UNE são eventos de bastante potencial de mobilização de público. Consequentemente são bons espaços para fruição e troca culturais. Isso em si basta como projeto cultural?


Definitivamente não. A Bienal antes de mais nada é uma atividade da UNE e penso que o trabalho cultural está para além com o Circuito Universitário de Cultura e Arte.

A Bienal foi um pontapé inicial, um “junta pra ver no que dá”, cumpriu e ainda pode cumprir um papel importante no projeto cultural, mas deve ser entendida como evento que é, nada mais. Um grande momento de celebração e cada vez mais deveria refletir os avanços e retrocessos do trabalho cultural.

O fundamental é entender que é preciso avançar na construção do CUCA, para visitarmos novamente a história, ao final da 1 e 2 Bienal grupos de estudantes fizeram criticas importantes aos eventos, algumas foram superadas outras ainda não, mas todas passavam fundamentalmente pelo entendimento que um trabalho cultural sério não acontece de dois em dois anos e deve sim, ser permanente e fruto de um processo de trabalho e diálogo.


- O que você, como um profundo conhecedor da dinâmica do movimento estudantil e um dos elaboradores do modelo de projeto cultural que a instituição segue, extrai de reflexão sobre o papel das Bienais da UNE num contexto mais amplo da cultura brasileira?

Certamente a parte do trabalho cultural que mais aparece aos olhos do Governo, dos parceiros e do conjunto da sociedade é a Bienal, ela é uma “vitrine” do trabalho cultural, portanto deve ser aproveitada como tal.

Do ponto de vista do calendário cultural brasileiro, não tenho dúvida de que a Bienal se consolidou como um dos eventos importantes, entretanto, a cultura brasileira não pode se limitar ao calendário.

Na atual realidade, entendo que só à medida que a Bienal refletir um profundo processo de criação e relação entre o CUCA e projetos culturais espalhados pelo país, hoje muito associados aos Pontos de Cultura, vai conseguir influenciar e ser influenciada de maneira mais “orgânica” pelo conjunto das experiências da cultura brasileira
.  

-Você terminou sua trajetória no CUCA da UNE e se tornou um profissional de produção cultural. Montou a produtora Contra Regras e está batalhando seus projetos. Qual seu posicionamento dentro desse mercado, ou seja, como você vê o mercado cultural e age nele? O que você leva da sua experiência no CUCA da UNE para a vida profissional?

Terminei não! Dei um tempo. Na verdade a Contra Regras ampliou minha visão, para além da cultura, pretendemos ter ações também em outras três áreas, esporte, educação e meio ambiente, a agência se propõe a criar, elaborar e executar projetos visando a ampliação dos direitos sociais do cidadão, atendendo o setor público, privado e terceiro setor.

Uma curiosidade é que surgimos do amadurecimento individual de militantes sociais e foi nessa contradição que desde 2003, a partir de atividades do CUCA, gestamos aos poucos a Contra Regras, individual e coletivamente.

A proposta foi montar uma agência, a partir da história do surgimento e da escolha do nome, dá para se perceber que não estamos dispostos a simplesmente nos adaptar, queremos ousar, apresentar um novo conceito desde nossa organização interna, passando pelos projetos desenvolvidos até nossa relação com o tal “mercado”, estamos começando e conhecendo melhor mas, chegaremos a uma relação diferente da maioria, nossa experiência e convicções nos impõem isso.

Confesso que grande parte da experiência que tenho é fruto das atividades que desenvolvi na UNE e no CUCA, tive na verdade bons professores como Ernesto, Tininha e Parras. Se tenho dívidas? Não todas elas foram muito bem pagas com o empenho e paixão que militei, mas o carinho continua grande.

Valeu pela entrevista e um grande abraço a todos os cuqueiros.