quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Célio Turino | PARTE 2


A gente enxerga o Programa Cultura Viva como o catalisador de um processo político que tem referência o Fórum dos Pontos de Cultura já realizou dois encontros, vem se consolidando. Como você percebe essa relação de uma política pública impulsionando uma organização da sociedade civil. Isso altera antigas relações entre Estado e sociedade civil?

É algo assim que eu tenho me debruçado, sabe? Eu mesmo às vezes eu me delicio em tentar entender o que aconteceu. Olha só que interessante: o programa começou a partir de um reconhecimento e de uma reverência à iniciativa da sociedade. Então, eu acredito que esse foi o primeiro ponto positivo do programa. Como resultado disso; uma vez que ele potencializa essas iniciativas, busca o empoderamento das pessoas e dos grupos sociais; houve também um empoderamento da rede, até porque o Cultura Viva e o Ponto de Cultura ele só se realiza quando ele se articula em rede, do contrário fica só um simples processo de transferência de verbas, que é importante, mas que é limitado. O que a gente potencializa na articulação em rede e que é visível para quem participa de encontros como a Teia, que a gente já fez três, é muito significativo. E aí, o que eu percebo é que está se gestando um movimento cultural enquanto movimento social e é uma forma nova de expressão da sociedade. Que junta a ética com a estética. Ele junta o entendimento de Brasil, uma idéia mais difusa de planos, de ideário para o país com a expressão artística, com o sentimento, um pouco razão e sentimento. A gente trabalha numa linha também entre essa sensibilidade, o sensível e outras formas de inteligência e percepção da vida que não só a racional, cartesiana. E isso está se expressando em um movimento social. No que pode dar? Eu não sei... Eu gostaria que desse em muita coisa, mas isso ainda exige um tempo. Mas eu diria que, talvez, esse novo movimento cultural que vai se gestando, polifônico, diversificado, mas muito fincado na realidade social.

A gente trabalha muito com cultura popular e ao mesmo tempo trabalha com uma cultura de vanguarda estética tecnológica, cultura digital. Tem vários Pontos de Cultura, ali o Ponto de Cultura de Folia de Reis e, do lado da Folia de Reis, com aquele velhinho desenvolvendo todo um trabalho de cultura tradicional, tem um menino com dread, cheio de tatuagem trabalhando ali no estúdio multimídia que grava as músicas daqueles senhores... então, são outros processos de integração política e social que vão se gestando.

Eu acho que, talvez – e aí a gente precisa de mais alguns anos – a gente esteja vendo a ebulição de um novo movimento social que pode estar para o processo de transformação do Brasil agora no começo do século XXI, da mesma forma que o movimento popular, mais no sentido stricto, daquelas lutas de moradia, de saúde, do movimento sindical estiveram na construção do Brasil do final do século XX. Então toda aquele movimento sindical dos anos 70 e 80 resultou também em um desenho que é o que a gente vivencia hoje. Talvez por esse movimento mais diverso da cultura a gente esteja vendo o nascimento de um outro processo de mudança. E o que vai dar? Aí eu não sei... Espero que dê em algo bom porque são as pessoas fazendo para as pessoas, que pessoas consigam cuidar bem. A gente só consegue mudar as coisas se a gente cuida bem de nós mesmos e dos outros.

Há um texto seu de 2006 sobre narrativa histórica e museus. E ali você problematiza a seleção do passado e há uns elementos ali bastante interessantes para pensar o Cultura Viva como ele contribui – ou se ele pode contribuir, se você acha que contribui – para essa narrativa histórica. Como esses agentes que fazem parte do Programa Cultura Viva lidam com essa idéia de estarem se inserindo em uma nova narrativa da nação?

Eu fiquei bem feliz por vocês terem tido essa percepção. É algo que até eu coloco pouco às vezes nas minhas falas sobre o Programa. Eu diria o seguinte: a grande fronteira da luta de classes, e aí dessa disputa de poder, está na conquista do direito à narrativa. Quem consegue apresentar sua versão tem condições de se legitimar enquanto poder. Isso eu percebi no meu trabalho como historiador, em museus. Sempre há uma disputa pelo direito a fala, e pelo não direito a fala. E isso não no Brasil só, no mundo todo. Eu diria que o que a gente fez com o Ponto de Cultura tem muito por base essa percepção. O estúdio multimídia tem um papel essencial, é o único elemento comum a todos os Pontos. Para que? Para que as pessoas tenham condição de conseguir apresentar a sua versão e pela sua própria voz. Muitas vezes a gente tem acesso à situação de vários povos, e até a partir de narrativas muito comprometidas como os povos indígenas, pessoas mais exploradas, quilombolas, trabalhadores e tudo mais... Mas, ainda assim, é um olhar externo, um olhar que vem de fora. O que a gente tenta praticar com o Ponto de Cultura é o exercício do olhar interno. O Machado de Assis tem um conto que eu gosto muito que é O Espelho. Ele fala de um alferes. O conto é assim: Um novo tratado sobre a alma humana. Ele fala que as pessoas têm na verdade duas almas, a alma de dentro e a alma de fora. A de dentro que é aquela que faz e a de fora que diz quem nós somos, que determina nossa personalidade. Esse alferes, de repente, os escravos fugiram e não tinha ninguém e também não tinha mais a família... Não tinha mais ninguém pra dizer: “olha só como você é bonito, olha como você é nobre”. Aí, ele foi descobrindo que a personalidade dele foi definhando e que ela dependia do que falavam dele. Mas também dependia do que saia de dentro dele. Então, na nossa sociedade essa impossibilidade de uma narrativa polifônica ela é estratégica para manter um sistema de dominação. Então, o que a gente faz é trabalhar numa contracorrente. Esse ano, nós vamos lançar provavelmente no Fórum Social Mundial, um novo edital que é uma premiação para Pontos de Mídia Livre. Todo esse movimento que vai se constituindo de midialivrismo, de sites de articulação de redes, a gente acredita que seja muito próximo do que a gente vem fazendo com os Pontos de Cultura. E eu acho que esse vai ser o ano em que a gente vai colocar em prática essa questão da narrativa mais em pauta.

Nas políticas públicas para cultura a gente percebe que tem uma idéia elementar de construção e fortalecimento da nação. Isso pegando desde 37 ali com a fundação do SPHAN, com o Rodrigo Melo Franco e como essa política veio se desenvolvendo e até os reveses que essa política mesma do patrimônio ela teve. E o que parece é que, hoje, a gente lida com uma outra idéia de nação, com uma outra idéia de cultura... Você concorda? O que você pensa sobre esse processo, você concorda que tem uma transformação, como você entende as formas de lidar hoje com essa idéia de nação e de cultura?

Eu concordo em parte. A idéia de nação, da fundação de nação, que coincidiu com o governo do Getúlio Vargas, que reconheceu a capoeira, aí vem toda a discussão sobre o barroco e tudo mais ela foi essencial para criar essa imagem do que nós somos, mas o que nós somos é um processo de transformação constante. Essa busca veio de antes. Os modernistas colocaram essa questão de uma forma muito original, de certa maneira até hoje sobrevive esse pensamento dos modernistas, da antropofagia. Eu acredito que foi uma contribuição muito essencial assim como, se você joga para antes, o romantismo foi sempre esse esforço de um Brasil, de a nação se entender como nação. Nação também é uma abstração, mas ela é uma abstração a partir de elementos muito efetivos. O Brasil tem um idioma e, ao usar esse idioma, e o Brasil é o maior país do mundo que tem um idioma só que é o português, que é entendido de Norte a Sul do país - se bem que nós temos muitas outras línguas faladas aqui, ao mesmo tempo em que é uma grande nação com um único idioma, nós também somos uma nação em que sobrevivem vários outros idiomas. O idioma que eu digo tem extrema importância porque não é só o jeito de falar. É o jeito de pensar. Ou melhor: o jeito de falar reflete o jeito de pensar. Esse jeito mais suavizado de falar brasileiro, meio como onda. Quem viaja para o exterior percebe isso, o pessoal até pede para que a gente fale só para ouvir a musicalidade do português do Brasil, que é diferente do português de Portugal. Então há uma necessidade enquanto expressão dessa identidade. Quem somos nós? A gente busca isso também com os Pontos de Cultura. Agora estamos chegando a algumas idéias. Primeiro: construção de identidade por si não resolve. É preciso que haja uma convivência dialética. A identidade ao lado da alteridade. Alteridade é a capacidade de você se ver no outro. Eu até estou trabalhando um texto que é um pouco sobre isso: identidade mais alteridade é que resulta a solidariedade. Inclusive resgatar o sentido da compaixão. A política ela é uma disputa de interesses e ela foi se desvinculando de valores, muito ligada só a ideologia. A ideologia é a construção de idéias a partir de grupos, de relações sociais e é fundamental, ideologia é essencial. Mas eu queria me preocupar com a construção de valores. E alguns valores são esses. Não há ideologia de transformação social que resista com a falta de solidariedade, com a falta de sentimento de compaixão, de se compadecer pelo outro. Um pouco o que a gente vai fazendo com o Ponto de Cultura. Por exemplo, agora, com aquela situação lá de Santa Catarina, um grupo de Pontos de Cultura foi lá passar o Natal em abrigos. São pequenos exercícios, mas a idéia do Ponto de Cultura sempre é essa, de pequenas ações que vão acontecendo e vão criando sentido.

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