terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

CÉLIO TURINO | parte 1

Célio, conta pra a gente um pouquinho quais foram os caminhos – intelectuais e políticos – que levaram você até a SPPC...

Comecei minha militância social e política em 1977 no movimento estudantil secundarista. Na sequência entrei no PCdoB e participei de toda a luta pela redemocratização do país. Das lutas sindicais, Movimento Contra a Carestia, Comitê Brasileiro pela Anistia, Movimento de Defesa da Amazônia até a Campanha das Diretas Já. Sempre tive uma ligação mais direta com a organização da cultura. Mesmo quando estava na universidade, fazendo História na Unicamp, eu me dedicava muito a atividades culturais em bairros, em periferias e favelas na região de campinas, com cineclubes, feiras de artes em bairros distantes e atividades culturais nessas regiões. Isso fez com que desde o início eu desenvolvesse meu trabalho profissional. Dirigi vários museus de história e antropologia até que fui chamado pra trabalhar como secretário de cultura em Campinas, isso em 1990. Fui secretário de cultura até 1992 – foi lá que eu desenvolvi o conceito do que hoje são os Pontos de Cultura. É claro que era algo um pouco menos elaborado do que a gente aplica hoje, mas envolvia as casas de cultura, com gestão comunitária e uma série de ações mais autônomas e próprias da comunidade sendo desenvolvidas nesses locais. Depois fiz mestrado em História e Cidades, escrevi vários ensaios entre eles Na trilha de Macunaíma [Editora SENAC, 2004], que é um livro que trata da relação ócio e trabalho na cidade e da própria constituição do sentido de identidade a partir de um estudo dos modernistas, da relação da cidade com seus espaços de lazer, que são sobretudo áreas culturais.

Em 2004 o Ministro Gil [Gilberto Gil, Ministro da Cultura entre 2003 e 2008] me convidou para trabalhar no Ministério da Cultura e formular um programa que gestava-se com uma série de problemas. Era um programa de acesso a cultura e que não tinha dado muito certo. Isso porque ele tinha o foco muito voltado pra estrutura, pra construção de centros culturais em periferias e favelas no Brasil e não tinha muito substrato em termos de conteúdo, do uso e da ação permanente. E cultura é, sobretudo, isso. Muito mais que prédio, cultura são pessoas. Cultura é um processo contínuo. O próprio nome, a própria etimologia da palavra cultura vem daí. Cultura vem de colere, do latim colere que é cultivo. E a mudança que eu propus foi simples: nós deixamos de colocar o foco na estrutura pra jogar o foco naquilo que é o próprio fazer cultural.

Então a gente pode dizer que seus caminhos individuais, intelectuais confluíram com uma idéia do Ministro Gil e daí surgiu o Cultura Viva?

É. Você veja bem, joguei aqui pra você trinta anos! Sobretudo no início da nossa vida, nossa militância social e política ela determina muito do que nós seremos. Tem gente que diz que, quando a pessoa envelhece, ela tem que mudar de opinião. Dizem que quem não foi comunista na juventude está errado, mas quem continua depois dos quarenta é burro. Eu te digo o contrário. Inclusive as minhas convicções ideológicas em defesa do comunismo enquanto uma filosofia, enquanto entendimento de construção de uma sociedade ela só se reforçou, sobretudo nesses últimos anos, nessas minhas andanças aí pelo Brasil a fora. Com o trabalho dos Pontos de Cultura eu percorro muitos cantos do Brasil: aldeias indígenas, cidades muito pequenas do interior do Nordeste e desse Brasil todo, assentamentos rurais, favelas e ao fazer esse percurso eu diria inclusive que a minha convicção de comunista se consolidou muito mais. Isso depois dos quarenta, quase que cinqüenta.

Quem lida com cultura sabe que entre o planejado e o feito tem um desnível. Como não parece o seu caso, em que se reforçaram suas convicções, muitas vezes entre o planejado e o feito tem uma decepção. A próxima pergunta é exatamente sobre isso. Esse processo que você vem pensando e planejando ao longo do tempo e o que é realizado no Cultura Viva. Como você enxerga essa transição entre o planejado e o feito?

Então, é muito doloroso. Porque a sociedade ela não se coloca aberta a esse protagonismo da própria sociedade. O sistema econômico e político, a mídia, todos eles trabalham num sentido unidirecional. O que nós fazemos com o Ponto de Cultura é o oposto disso. É incentivar uma polifonia, como falava o Milton Santos – aliás eu uso o Milton Santos na construção teórica do Programa Cultura Viva – e, ao estabelecer essa polifonia, esse protagonismo efetivo dos agentes sociais, das pessoas, nós quebramos uma lógica que é uma lógica de dominação, que é uma lógica concentradora. Que vai desde todo mundo se vestir igual até outras formas de concentração de poder, de imposição de formas de trabalho e tudo mais. E o que a gente faz não. É o contrário. O que o Cultura Viva tem de original? Ele segue o fluxo. E ao seguir o fluxo ele segue a vida. E a vida é inacabada, é contínua. Tem até uma frase do Paulo Freire que é assim “Onde há vida há inacabamento”. Então o próprio planejamento, que às vezes a gente imagina que tem que ser um planejamento estático, todo completinho, onde todas as etapas são previstas, conosco a gente faz de uma outra forma. É um planejamento no processo. Caótico, mas nesse sentido da física quântica, que acaba encontrando a ordem nesse caos.

Então, de fato é um caminho difícil, é tortuoso, porque a gente trabalha com outros paradigmas. Quais são esses: em vez de um Estado que impõe um Estado que dispõe. Isso parece que é uma pequena diferença semântica, mas ela é muito significativa. Porque a natureza do Estado desde que ele se constituiu há cinco mil anos atrás é impositiva e concentradora. O que a gente faz é oposto disso. Como que eu exemplifico: nós lançamos um edital em que se abre pra receber propostas da sociedade. E nós dizemos quanto podemos dispor, qual é o recurso, mas não como aquele grupo social deve agir. Cada um dá uma solução diferente para o recurso que o Estado dispõe. E assim a gente faz um programa bastante diverso e que encontra complementaridade exatamente na diversidade. Isso que é a lógica da vida. Se você for olhar uma floresta, ela é extremamente diversificada e complementar. Tem árvores que nascem mais rápido pra dar sombra pra outras árvores que precisam de mais tempo pra crescer. Por exemplo, o mogno, se você plantar o mogno a céu aberto, a pleno sol, ele não cresce. Precisa ter uma árvore mais frágil sobre ele e ele vai crescendo àquela sombra e fica aquela árvore esplendorosa e secular. Então, um pouco é esse processo da complementaridade que a gente vai percebendo com os Pontos de Cultura. De certa forma eu diria que o programa, ele tem alcançado seus objetivos. Mas, falta muito ainda pra se fazer. Sobretudo porque eles caminham nessa idéia da liberdade, da capacidade da iniciativa, da capacidade criadora das pessoas. Acho que isso acaba superando as dificuldades de estrutura, de concentração. Enquanto paradigma, a maioria das políticas públicas atua a partir da carência, da falta. Então, as pessoas não leem, é preciso oferecer livro para elas. As pessoas não tem acesso ao serviço de saúde, é preciso oferecer um serviço de saúde a elas e assim por diante. O Cultura Viva trabalha no oposto disso, ele desenvolve uma política a partir da potência das próprias pessoas. É uma lógica invertida. Que resultado isso pode dar? Não sei... E ainda há muito a ser cultivado. Mas nós acreditamos e é isso que nos faz ficar aqui. É muito difícil a estrutura burocrática,a dificuldade de recursos humanos e tudo mais. Mas é acreditar que é possível transformar a realidade e que essa realidade só pode ser transformada através das pessoas. Somente a partir das pessoas, das pessoas organizadas em grupos, em conjunto, da forma que elas acharem melhor, que dá muita força pra continuar enfrentando as dificuldades.

Sem dúvida essa inversão é uma das coisas mais interessantes do Programa Cultura Viva. De ser um Estado menos impositivo, isso é bastante inovador. Mas isso dentro de uma burocracia estatal que enrijecesse, deve ser bastante complicado. Tem inclusive uma idéia de transformar o Cultura Viva em lei pra que não se perca no processo... Como é que você enxerga essa relação dentro da burocracia e essa necessidade de transformar em lei?

Houve uma etapa: era necessário iniciar o programa e o aparato legal e jurídico para amparar isso estava muito limitado, além das dificuldades materiais de governo. Pouca gente, pouca estrutura de funcionamento, de trabalho. Mas, se o programa não fosse pra rua ele também não se efetivaria. Pra você ter uma idéia, eu tomei posse aqui no dia 31 de maio de 2004. No dia 14 de julho nós já estávamos com o edital na rua. Em novembro a gente já havia feito o primeiro convênio com um Ponto de Cultura. Foi um Ponto de Cultura de Arcoverde, no agreste pernambucano. Então o elemento surpresa, o elemento do movimento ele é importante porque as instituições são muito pesadas e aí não só o Estado até a UNE ou um sindicato, ela tem o peso de uma cultura institucional muito carregado, o que acaba engessando muitas vezes uma série de idéias que a gente por ventura tenha. Então, foi a partir um pouco dessa convicção também que a gente deu uma driblada nesse processo com esse movimento de agir rápido. Ocorre, porém, que depois do processo de implantação do programa nós enfrentamos problemas muito duros. Prestação de contas, normas bastante rígidas, não adequadas ao processo da vida. Isso trouxe dificuldades sobretudo para os primeiros Pontos de Cultura. Agora, nós estamos com dois movimentos: o primeiro é da descentralização do Programa. Nós já chegamos a 850 Pontos de Cultura, não há condições de fazer a administração disso diretamente de Brasília. Ao longo desse ano que passou, nós fechamos uma série de acordos com governos estaduais e algumas prefeituras para que eles lancem seus próprios editais. Mas enormes problemas vão surgir. A tentativa, às vezes a tentação, de aparelhar o programa, de instrumentalizar. Então, há uma outra supervisão, um outro acompanhamento que nós vamos fazer. Mas inevitável porque é necessário que a gestão das redes dos Pontos de Cultura fique mais próxima de onde acontece a ação. E aí o Ministério da Cultura fica na supervisão. Esse é o caminho que a gente está fazendo dentro do marco legal atual.

Agora, a solução mais efetiva envolve a criação de uma lei que a gente está chamando Lei da Autonomia e do Protagonismo Cultural, uma lei que fosse muito simples mas, que reconhecesse alguns pontos que estão sendo um grande acúmulo na definição da política cultural. Alguns gestores de política de cultura confundem cultura com evento ou com atividades pontuais, quando você faz um acordo com um grupo cultural a preocupação é excessivamente voltada para o resultado, quando cultura não é produto. Cultura, como disse no começo, cultura é processo. Então, o primeiro ponto a ser apresentado nessa lei é o entendimento de cultura enquanto processo. O segundo de que ela é produzida pelas pessoas, pela sociedade. Então, a autonomia no fazer cultural é essencial. Sempre quando houve tentativa de ingerência profunda, seja ela de ordem econômica, que aí joga cultura para o mercado e fica uma cultura pasteurizada; ou política-ideologica, como houve inclusive no período do realismo socialista na União Soviética, os resultados são bastante ruins e empobrecedores da cultura. Ou seja: a cultura precisa da autonomia, precisa da liberdade, porque ela só se desenvolve com força a partir de um protagonismo das pessoas. Então essa seria a essência filosófica dessa leia que a gente está formatando. E nós acreditamos também que o processo de aprovação dessa lei não deve ser iniciativa do governo e muito menos de uma emenda parlamentar, de uma proposta de um parlamentar. Porque o que a gente está tratando é do próprio processo civilizador brasileiro, é da cultura, da alma das pessoas, da sociedade, do país e da nação. Ou seja, acho que seria incoerente que nós fizéssemos uma lei que não fosse também dentro desse processo de baixo pra cima. Então, agora a gente vai trabalhar na elaboração de uma minuta, na consolidação conceitual dela para em seguida caminhar para uma lei de iniciativa popular. Imagino que com milhares, ou, quem sabe, pra lá de milhão de assinaturas, a gente estaria sendo mais coerente e daria mais consistência a essa lei.

... Com certeza! E como o apoio do CUCA, com toda a certeza!

Oh, que ótimo!



Nenhum comentário: